Um tema vem pautando cotidianamente os noticiários do país nas ultimas 2 ou 3 semanas: o fato de o Governo Federal ter constatado que não conseguirá atingir a meta fiscal estabelecida na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e depois regulamentada na Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2014.

Nestes últimos dias em particular, vê-se uma guerra travada entre o Governo, que tenta votar o PLN 36/2014 que diminui a meta estipulada, e sua oposição de direita, que berra contra o projeto. Cada qual utiliza-se de todas as manobras possíveis para fazer valer seus interesses.

Bom… mas que diabos é este monte de coisa que estão falando? Bom, para entender, precisamos resgatar as origens deste processo, que remonta à estruturação do Plano Real, para chegarmos no ano 2000, quando é aprovada a Lei Complementar 101, também denominada Lei de “Responsabilidade” Fiscal (LRF).

A implementação do Plano Real em 1994 está no meio de um conjunto de mudanças estruturais que passa a economia brasileira nos anos 90 baseada no Consenso de Washington: abertura comercial, abertura financeira, liberdade e fortalecimento para os fluxos de capitais voláteis, privatizações e diversas alterações legais e normativas adequando o país ao que seria chamado de neoliberalismo e que vigora a pleno vapor em nosso país já há 25 anos.

Uma das características centrais deste processo foi reestruturar o papel da dívida pública na economia e política brasileira. Se nos anos 80, toda a estrutura estava voltada para pagar os juros cada vez mais extorsivos da dívida externa, a partir do advento do Plano Real, aos poucos vai sendo montada uma grande estrutura para colocar a dívida interna como a principal “responsabilidade” de um país.

De fato, entre 1994 e 1996 a dívida pública interna brasileira explode. Seu valor mobiliário (títulos públicos emitidos no mercado pelo Governo) salta de R$ 62 bilhões para R$ 176 bilhões, com jutos que variavam de 25% a 60% ao ano. Nada deste crescimento da dívida se deu porque o governo “gastou de forma irresponsável”, mas sim porque este era a consequência das opções da política economia brasileira na época: ter a maior taxa de juros, para atrair recursos externos e manter a taxa de câmbio super valorizada para, na argumentação do governo, manter a inflação baixa.

Se inflação baixa era a justificativa para o endividamento no discurso neoliberal, politicamente estavam sendo criada a justificativa para um conjunto de processos que viriam, como as privatizações e, principalmente, a criação dos superávits primários, da DRU e a promulgação da LRF. Em conjunto, estes mecanismos colocavam o sistema financeiro como aquele com maior poder de pressão e chantagem e capaz de roubar a maior parte dos recursos públicos brasileiros.

Desde 1997 até 2014, são 17 anos seguidos onde o Brasil sempre possui superávits primários robustos, ou seja, parte relevante de nossas receitas (entre 6% e 10% do arrecadado – ou 2% a 4% do PIB) é destinado anualmente para pagamento da dívida e, mesmo assim, a dívida nunca deixou de crescer.

Três anos após o início dos superávits primários é aprovada a Lei de “Responsabilidade Fiscal” – LRF, a lei que coloca todo o setor público, em todos os níveis (União, Estados e Municípios) de joelhos perante o rei mercado financeiro.

Esta lei estabelece algumas diretrizes importantes e que devem ser revertidas para que possamos melhorar e enfrentar a estrutura desigual da distribuição da riqueza e acesso aos recursos públicos no Brasil:

a) A LRF estabelece limite para gastos com servidores públicos, mas não estabelece limites para gastos com terceirização, PPPs, convênios e outros processos de substituição da função pública por grandes máfias privadas que retiram direitos;

b) A LRF obriga o estabelecimento das metas de superávit que, se não cumpridas, podem levar o governante para a cadeia. Porém….

c) Ao fazer isto, a LRF estabelece o mecanismo conhecido como contingenciamento (congelamento) dos demais gastos públicos ao longo do ano. Assim, qualquer política social ou investimento só é executado, mês a mês, se estiverem garantidos os recursos não só para a política, mas também para a meta fiscal.

A consequência destes dois últimos processos, já amplamente conhecidas, é que a maioria das políticas começam o ano com pouquíssimos recursos, processos travados e dificuldade de universalização. No final do ano, caso o pagamento da dívida permita, é liberado um conjunto de recursos fazendo com que cada ministério/secretaria corra pra gastar o dinheiro de todo um ano liberado apenas no último trimestre, levando a um uso ineficiente e mal direcionado das políticas sociais.

A lei de “responsabilidade” fiscal, ao garantir a primazia do setor financeiro, transforma-se na Lei de Irresponsabilidade Social. Entre 2000 (quando a LRF foi criada) e 2013, enquanto o PIB brasileiro cresceu 50%, o setor financeiro cresceu 91%, sendo o que mais cresceu em todo o país!!!

Bom… Mas o que ocorre agora em 2014?? O governo Dilma resolveu girar à esquerda e enfrentar esta lei central do neoliberalismo brasileiro? Infelizmente não. Quem dera.

Ao longo do Governo Dilma, seja fruto de sua opção política, ou da submissão a interesses externos, ou mesmo da necessidade de garantir o apoio do empresariado brasileiro à sua reeleição (já no ano atual), o Governo Federal concedeu um conjunto de medidas que geraram isenção fiscal a diversos setores. Três breves exemplos:

Só para a indústria automobilística, o próprio Governo Federal admite que concedeu isenção de impostos, entre 2011 e 2014, no valor de R$ 6,5 Bilhões!http://blog.planalto.gov.br/assunto/isencao-de-impostos/

A FIFA lucrou como nunca na Copa e não pagou um centavo de imposto no país;

No dia 7 de outubro de 2014, 2 (dois) dias após o primeiro turno das eleições e constatado o crescimento de Aécio Neves, o governo aprovou a MP 656, cuja exposição de motivos calculava a isenção de impostos para diversos setores industriais em R$ 4,65 bilhões ao longo de 3 anos. http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/_Ato2011-2014/2014/Mpv/mpv656.htm

Pois bem, a farra de 2014 para os grandes empresários e a FIFA foi tão grande que o Governo não conseguiu organizar suas contas. Assim, o que o Governo Dilma está propondo com o PLN 36/2014 é tirar da conta que ele tem que repassar pro mercado financeiro aquilo que ele repassou em isenção de impostos para as grandes indústrias.

Vejam o Governo Federal não está propondo retirar a saúde, a Educação, o Bolsa Família da conta do superávit primário. Está propondo tirar as isenções de impostos e os gastos com o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), um conjunto de obras cada vez mais conhecidas pelo superfaturamento e pelas violações aos direitos humanos.

Não está na perspectiva do Governo Dilma enfrentar o mercado financeiro. Antes mesmo desta crise ocorrer, o Governo já previa que em 2015 mais de 50% (mais da metade!!!) de todo o orçamento de 2015 seria destinado para o pagamento de juros e para a rolagem da dívida, conforme a gente verifica na apresentação da Ministra do Planejamento ao Congresso Federal:

http://www.planejamento.gov.br/secretarias/upload/Arquivos/sof/PLDO_2015/Apresentacao_PLDO2015.pdf

Então, por que tanta crise no Congresso, se os interesses da indústria e do mercado financeiro estão sendo garantidos em detrimentos dos gastos sociais?

A crise ocorre porque do outro lado do Governo petista existe uma oposição de direita cada vez mais oportunista, raivosa e conservadora, que se aproveita desta proposta de flexibilizar a Lei de “Responsabilidade” Fiscal em favor das isenções de impostos para criticar o governo e se dizer a grande defensora dos interesses de Deus, ops, do mercado financeiro.

Existe alguma proposta à esquerda?

Sim. Desde o ano 2000, com os 6 milhões de votos conquistados no plebiscito popular sobre a dívida externa, os movimentos sociais e os partidos de esquerda vêm demandando que a única medida capaz de acabar com o domínio do mercado financeiro e a centralidade da dívida no país é fazer valer a constituição federal e regulamentar o processo de auditoria da Dívida Pública. Veja o enunciado da Constituição Federal:

Art. 26 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias:

“No prazo de um ano a contar da promulgação da Constituição, o Congresso Nacional promoverá, através de Comissão mista, exame analítico e pericial dos atos e fatos geradores do endividamento externo brasileiro.

§ 1º – A Comissão terá a força legal de Comissão parlamentar de inquérito para os fins de requisição e convocação, e atuará com o auxílio do Tribunal de Contas da União.

§ 2º – Apurada irregularidade, o Congresso Nacional proporá ao Poder Executivo a declaração de nulidade do ato e encaminhará o processo ao Ministério Público Federal, que formalizará, no prazo de sessenta dias, a ação cabível.”

Muitos estudos, em especial o voto em separado do Deputado Ivan Valente (PSOL/SP) na CPI da Dívida já mostraram o quanto a dívida não só é fruto de uma opção política dos governos e da burguesia brasileira como também contém várias cláusulas ilegais. Um processo de auditoria, com participação popular, poderá mostrar de forma nítida o que de fato devemos e o que é roubo direto de nossos recursos sociais.

Com a auditoria feita, será possível reestruturar prioridades e reorganizar a economia brasileira ruma à distribuição de renda e efetivação de direitos.

Por isto que, ante o PLN 36/2014 defendido pelo governo e a defesa raivosa dos mercados feita pela oposição, é até lícito que se vote alguma flexibilidade da LRF, mas, nossa defesa prioritária, nossa palavra de ordem deve ser sempre:

AUDITORIA DA DÍVIDA PÚBLICA JÁ!

Por Chico Carneiro De Filippo, militante da Insurgência/PSOL/DF e da Rede Jubileu Sul

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