Por Igor Moreira Pinto*.

As instituições em geral não compreendem a “repentina” ascensão das mobilizações nas grandes cidades brasileiras. Procuram a identidade das manifestações em sujeitos políticos tradicionais, não os identificando acham que as mobilizações são essencialmente difusões. Mas não são. São convergências. Convergências de insatisfações, contestações, organizações e ações que caracterizam a luta urbana no Brasil. Encontramos no conteúdo das reivindicações o nexo entre passado e presente, conexões entre sujeitos que compartilham realidades, lutas e solidariedades.

No passado e no presente, moradores das cidades brasileiras lutam por: acesso ao solo para moradia; infraestrutura urbana e social, ou seja: água, saneamento, drenagem, pavimentação, áreas ambientais, espaços de lazer, encontro e celebração, educação, saúde, transporte público. Além disso, o direito dos cidadãos participarem da definição dos investimentos e prioridades da cidade. Também lutas por afirmação de identidades e contra opressões raciais, sexuais, geracionais etc.

Dentro desses universos de anseios, já foram realizadas várias mobilizações na história do Brasil, organizados infinidades de movimentos das mais diversas naturezas. Diversidades culturais e políticas que marcam as identidades urbanas – tangente inclusive ao peso da referência de origens tradicionais e camponesas que influenciam e provocam solidariedades nos povos das cidades.

Neste momento, milhares de moradores das cidades vão às ruas tendo como estopim o transporte público (e não é a primeira vez na história). Esse estopim dispara uma série de outras insatisfações populares com a incapacidade do Estado de garantir os direitos sociais – em Fortaleza, por exemplo, vários bairros populosos têm sérios problemas de abastecimento de água e saneamento. Educação, transporte e saúde pública completam o quadro de precariedades.

Aos problemas do cotidiano, a população vê somar-se dramas “novos”: aumento dos despejos provocados por nova onda de valorização e expansão imobiliária; remoções de comunidades para construção de empreendimentos elitistas; aumento das violências.

É relevante que em várias cidades a contestação à Copa seja o ponto de convergência dos sujeitos que se mobilizam. A Copa e outros megaeventos representam: investimentos concentradores de riquezas para elites de sempre, em detrimento de investimentos democratizantes da economia e do viver urbano. Como tal, são produtores de poder econômico e político para a grande burguesia que viola cada vez mais direitos dos cidadãos para obter lucro. Aumentam os conflitos sociais em torno da moradia e dos territórios na cidade. Culturas emergentes de setores que resistem se chocam com a alienação cultural mercantilista.

A classe política se sustenta com base na fórmula: clientelismo e autoritarismo mais poder econômico. Soma-se a isso a perda da referência em partidos de esquerda e sindicatos. É nesse caldo que nascem novos movimentos sociais urbanos nos anos dois mil, articulando luta de classes, direitos à cidade, autonomia política, diversidade cultural. Uma infinidade de grupos, coletivos, indivíduos ativos, em diversos espaços (bairros, comunidades, escolas, igrejas, festas, estádios, trampos, internet…) e em diversos tempos geracionais (mantendo vínculos de continuação com lutas tocadas no passado por movimentos sociais e culturais diversos). Assim se germinou o sentimento contestatório que virou consciência contestatória e, enfim, ação contestatória. Quem acompanhou esse processo ao longo do tempo não ficou perplexo.

Logo, há duas vitórias para os lutadores do cotidiano urbano no Brasil: a convergência, ressonância e massificação de pautas fundamentais para as lutas dos movimentos e setores populares urbanos; o chacoalhar da velha ordem dominante, com a desmoralização dos grandes veículos de comunicação e seus ícones conservadores, junto ao acuamento dos governos autoritários deste país. Entendo que não há diferença entre governo e capital, no estado capitalista em que vivemos todo governo é governo do capital. O controle e gestão do transporte público ou do solo urbano são exemplos dessa submissão dos governos ao capital.

As ruas ameaçam, assim, a ordem econômica e política que governa e explora as cidades brasileiras, tornando-as espaços negados ou negadores para os seus próprios cidadãos. Por isso as manifestações se dirigem aos símbolos dessa ordem: sedes de governos, emissoras de tv, estádios de futebol; além disso, ocupam praças, centros, avenidas, estações, param o trânsito, enfrentam a polícia, não aceitam bloqueio ou dispersão.

Como temem as mobilizações, as diferentes instituições do sistema, que disputam poder entre si para ver quem manda mais em nós, distorcem, manipulam, tentam disputar os rumos. Aí vem uma confusão ideológica de interpretações e leituras, e ainda dizem que confusos são os manifestantes. Não conseguem dominar aquilo que precisam deter, e buscam provocar o máximo de divisões: pacíficos, vândalos, partidários, anti-partidários.

Mas nas manifestações o que vemos são justamente segregações se desmanchando, setores sociais e culturais segregados pela cidade do capital se encontrando e buscando linguagens comuns, e buscando compreender diferenças também. E o que é a Revolução Urbana senão o fim das segregações e dos modelos impostos de cima pra baixo, a realização plena da diversidade urbana em sua eterna mutação, a democracia direta e o controle dos territórios pelas populações.

– Observações sobre os diversionismos ideológicos da mídia e dos partidos:

1 – A mídia quer reduzir todos os problemas do Brasil à questão da corrupção política, “esquecendo” de dizer que a corrupção é estrutural, está presente em todas as instituições de todos os poderes do estado, do poder econômico, logo só a extinção dessas estruturas podem levar ao fim da corrupção.

Por outro lado, os partidos de esquerda, hoje no governo, querem relativizar ao extremo aquilo que trataram como absoluto até as vésperas de 2002 – ética política e moral pública.

2 – O repúdio a veículos de comunicação, que detêm o oligopólio das concessões públicas de tv, por parte de manifestantes que querem o aprofundamento da democracia, nada tem a ver com a perseguição de ditaduras à imprensa que luta para ser livre. Na verdade comunicadores livres têm sido fundamentais nas mobilizações e no enfrentamento ao poder midiático das corporações. Repudiar a Globo ou outra emissora privada é um ato de liberdade.

Ao contrário de períodos anteriores da história, os partidos de esquerda não estão sendo hostilizados por parte dos manifestantes (e não estou falando dos episódios-espetáculos fabricados em SP e RJ e difundidos nas tvs) pelo que trazem em si de “ameaça” de mudança, mas pelo que não realizaram de transformações desejadas e prometidas. Obviamente, a direita velha, engajada na luta secular contra o “comunismo”, age clandestinamente, incitando ataques aos “vermelhos” ou até orquestrando-os. Mas nem de longe disputam a pauta real das ruas.

3 – A direita partidária está ou acuada ou agindo clandestinamente. São os órgãos da grande mídia os verdadeiros partidos da burguesia. E as pessoas compreendem isso com uma inteligência coletiva nunca vista antes em processos de mobilização massivos no Brasil. Até porque partidos de esquerda e sindicatos que dirigiam ou representavam ou mediavam processos passados tinham muito medo de peitar a mídia empresarial, pois precisavam dela para realizar seus anseios de poder.

Se a construção de pontes anti-segregação é um avanço revolucionário das manifestações – pessoas com referências as mais variadas que vão de uma pastoral social a uma torcida organizada ou um movimento LGBT ou de comunidades, encontram-se na rua e dificilmente se encontrariam em outros espaços – então é isso o que a mídia mais combate. Principalmente depois que viu alguma potencialidade na separação entre “pacíficos” e “violentos”. Apesar da turma do oba-oba, que foi no embalo da apoteose popular das manifestações, em geral as mobilizações são unidas na diversidade pelo objetivo de contestar o sistema e denunciar suas injustiças. A separação de linhas não significa que a “linha de frente” que enfrenta bloqueios e tentativas de dispersão da polícia não tenha apoio das demais linhas, que também resistem com seus corpos ao gás e às bombas e balas de borracha, gritando “NÃO RECUA!”. São linhas da mesma manifestação que se recusa a ser bloqueada pela força policial. Somente na dispersão, no crepúsculo das manifestações, é que ocorrem atos de ataque a símbolos do sistema – como um grito de revolta raivoso, que muitos não compartilham, mas poucos realmente condenam. É uma revolta justificada para o tamanho das violências cometidas no cotidiano contra tantos jovens brasileiros – obviamente muitos oportunistas aproveitam a onda para realizar anseios mesquinhos e individualistas.

– As vitórias:

As mobilizações são vitoriosas na medida em que resultam conquistas concretas. É aí que a mídia e os políticos tentam desviar o rumo para o diversionismo legislativo. Mas o fato é que as mobilizações continuarão, independente do tamanho, buscando a realização do direito a viver nas cidades sem sermos objetos de gerar lucros, mas sujeitos de direitos sociais, culturais e por poder de decisão real do povo – logo, em confronto direto com os donos do poder econômico e do poder político.

Envolver cada vez mais os setores populares das cidades, ecoar suas pautas reais para o centro do debate político, conseguir conquistas concretas para tais demandas – eis a via para a transformação. Neste sentido poderíamos citar: 1 – Acabar com despejos e remoções; 2 – Realizar demandas históricas dos grandes bairros das cidades por infraestrutura urbana, social e comunitária; 3 – socializar o custeio, acabar (ou pelo menos diminuir) lucros e melhorar a qualidade do transporte público; 4 – Acabar com investimentos privatizantes de recursos (tipo Aquário), priorizar decisões coletivas das populações dos bairros e cidades; 5 – melhorar a qualidade ambiental das cidades parando a devastação e promovendo recuperações; 6 – garantir prioridade real e valorização dos profissionais da saúde e educação, aumentar a participação e controle social na definição de políticas e realização de gastos nesses setores; 7 – criar e aprofundar ao máximo mecanismos de democracia direta (o que infelizmente não é prioridade na reforma política dos políticos).

*Advogado e membro do Movimento dos Conselhos Populares (MCP).

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