Ao tratar do distanciamento social, a advogada e educadora feminista Magnólia Azevedo Said faz uma reflexão sobre o será de nós no pós-pandemia, questionando se os impactos do coronavírus trarão transformações efetivas. 

Ela ainda critica o descaso da mídia brasileira com a situação nos países vizinhos latino americanos e caribenhos, e também alerta para a estratégia que se repetirá, agora com a desculpa da crise sanitária: a transferência da conta ao bolso da população pelo governo Bolsonaro, enquanto fortunas não são taxadas e sobra dinheiro para empresas e o capital financeiro. Confira o artigo.

A Atualidade de Camus

Homenagem de uma capricorniana involuntária a

um existencialista sensível

Quando começaram as indicações de que o coronavírus chegara ao Ceará  e que, portanto, teríamos que seguir as mesmas orientações que a Organização Mundial de Saúde determinara para os outros países, vi de repente minhas filhas, meu neto e minha neta desaparecerem de minha casa. Num primeiro momento pensei: vão ser só dois meses. Mas com o tempo a clausura passou para três, agora quatro meses, e eu solitária fisicamente, assistindo desesperadamente todo noticiário – manhã, tarde e noite – das duas principais emissoras de TV.

Até para a Rede Globo tive que dar o braço a torcer, passando a ver os inexpressivos e inexpressivas apresentadoras com aquele ar de seriedade e um sorriso programado de felicidade quando mostram, em especial, que os empresários também estão fazendo a sua parte, doando cestas de alimentos e material de proteção. Doando ou pedindo às pessoas que façam suas doações que eles entregam “aos mais necessitados”? Como assim, cara pálida?

Todas as famílias que estão nas periferias, no campo, em áreas de praia, nos igarapés, nas aldeias, quilombos e nas ruas são necessitadas. Não tem mais nem menos. Eis então que o “mito”, junto com seu Ministro da Economia, Paulo Guedes, anunciam uma “ajuda” de R$ 600,00 (antes foi anunciado R$ 200,00, mas ficara muito vergonhoso talvez). Desde então, temos visto pelas TVs filas imensas, pessoas amontoadas nas portas de bancos e lotéricas (sujeitas à contaminação em massa), não apenas para receber, mas principalmente para saber “se têm direito” àquela esmola. Enquanto isso, o número de pessoas contaminadas aumentando e Fortaleza entrando em colapso.

                                                           “No todo lo que se ve es realidad

No todo lo que se escucha es la verdad”

“Não vai durar muito, é uma tolice”. Mas as guerras são também uma tolice, o que não as impede de durar. Me peguei recordando uma leitura que havia feito no tempo de faculdade – “A Peste”, de Alberto Camus. Relendo o livro percebo as semelhanças com o que vivemos agora, em pleno século XXI, era da automação, do domínio do mercado e ainda a atualidade de seu pensamento.

A comunicação com amigas e amigos do continente latinoamericano e caribenho, escutar seus relatos de dor e de morte, tem me deixado entre a perplexidade e a revolta. Revolta por constatar que a grande maioria dos países desses continentes não interessa pelo que têm de pensamento pulsante, de capacidades transformadoras de suas realidades, mas pelo que lhes pode ser extorquido pelo sistema do capital.

Para os meios de comunicação aos quais a população em geral tem acesso, o que acontece nesses lugares, desde a capacidade de resistência dos povos, não é passível de ser notícia. Tenho visto relatados o desprezo, a violência e o descaso com que estão sendo tratadas as populações pobres e as organizações de direitos humanos desses países, que vivem sob o domínio de ditadores e de ultra conservadores, mesmo que milhares estejam morrendo, jogados nas ruas e/ou em covas coletivas abertas em qualquer lugar. Mas não “deu no New York times”? Tornados invisíveis e sem espaços para fazerem ressoar suas vozes, cresce a revolta entre defensoras e defensores dos direitos humanos.

Desde a Red Jubileo Sur Américas e Rede Jubileu Sul Brasil, nos chegam notícias do que ocorre nos países desses continentes. Um bloqueio perverso continua a pairar sobre Cuba, impedindo o povo de receber ajuda da China e de organismos internacionais para o combate ao coronavírus.

O contexto de El Salvador, uma das nações com mais violência no mundo, resultou em um comprometimento do presidente ditador com o Fundo Monetário Internacional (FMI), para o governo tanto aplicar um ajuste fiscal, entre 2021 e 2024, como orientar recursos para o pagamento da dívida pública, em troca de um empréstimo de U$ 389 milhões para ações relacionadas à pandemia. Dentre outras medidas restritivas e de penalização da população pobre, aumento de impostos já foram anunciados por orientação do Fundo.

No Equador as empresas petroleiras, mineradoras e madeireiras continuam entrando em territórios indígenas, desrespeitando a quarentena das populações. Trabalhadores dessas empresas estão pondo em risco as áreas de maior fragilidade, onde estão localizados povos indígenas que desconhecem como tratar o coronavírus. Sinto que falta em nós, de um modo geral, o exercício da solidariedade com nossos irmãos e irmãs que estão longe.

Estamos vivendo um tempo em que tudo se torna presente. Não se consegue planejar o futuro, a não ser o dia seguinte. Temo que nos acostumemos com as mortes, as contaminações, com as chamadas fatalidades – por exemplo, as pessoas que vivem em favelas vão ter que morrer mesmo, pois elas não podem vivenciar a quarentena, uma vez que vivem amontoadas em cubículos. Presidiários vão ter que morrer mesmo –   para onde iriam se existe uma superlotação nos presídios? Será que não haveria outro jeito? Já estamos nos acostumando ao pensamento que não interroga?

Temo que venhamos a perder o amor que sentimos pelas pessoas, aquelas que não estão tão próximas de nós, pois só o amor é capaz de guardar em si a expectativa e perspectiva de futuro, e sem esse sentimento perdemos a esperança. Temo que a linguagem cínica da presidenta do Banco Central Europeu se confirme como realidade aqui também em nosso país: “Os anciãos vivem demais e isso é um risco para a economia global, temos que fazer algo e já!”.

Não quero pensar que meus “salut” entre amigos e amigas se resumam a uma tela de celular, que meus batons irão se estragar pelo não uso, que não vou mais poder controlar de perto a vida das minhas filhas. Me angustia imaginar que ainda não existe data para que eu volte a ficar irritada no trânsito, para que eu me chateie com a sala ora muito quente ora muito fria do Esplar, para que eu sofra no consultório cheio de gente na minha frente quando fiz tudo para chegar bem cedo. Sem dissabores contornáveis não tem graça viver.

E o que será de nossos planos? Nossas necessidades resistirão ao tempo ou não terão mais sentido? Fazer da clausura uma rotina nos retira a capacidade de pensar longe, com a complexidade que os novos tempos e acontecimentos na sua dimensão planetária requerem, nos retira a capacidade de produzir ideias que, nesse momento, é do que mais precisamos.

Fazer dos dias da semana o mesmo dia, não encontrar diferenças entre a segunda e o domingo como dantes, não mais ficar enlouquecida na sexta-feira para farrear, pode acabar nos levando aquele espaço fora da terra, onde a dimensão espaço-tempo em nada se assemelha à nossa necessidade de dar significância a cada dia do tempo.

Não podemos permitir que esse vírus retire de nós a capacidade que temos de construir pensamento crítico e de fazer escolhas. Antes do vírus, a vida nos proporcionava reflexões em face do que queríamos para nós e para os outros com os quais temos identidade e identificação. Nossa utopia não pode terminar na porta da nossa casa, pois que é ela que nos move para a frente, como diz Galeano.

Choro por todos os povos e pela minha impotência. Choro por ter economizado palavras e afetos para quem está doente. Me impulsionam desejos de falar com amigas e amigos distantes e com aquelas pessoas conhecidas que são admiráveis, mas que eu não sabia como chegar a elas. Agora sei: com palavras, com solidariedade e com comunhão de pensamentos.

Será que é disso que estão falando quando dizem que depois dessa pandemia as pessoas não serão as mesmas? Ou isso só vai acontecer com aquelas pessoas que têm histórico de amor ao próximo, de bondade, compaixão, mas que, diante da era do avanço tecnológico e do consumo desenfreado, apenas deixaram de lado o exercício da sororidade e da compaixão?

Será que as milhares de famílias com empregadas domésticas ou faxineiras irão passar a olhar de forma respeitosa para essas mulheres como trabalhadoras, ou vão apenas constatar que não podem viver sem esse tipo de serviço e continuar explorando-as? Será que os homens, filhos do patriarcado, vão deixar de ser machistas e misóginos, apenas porque na clausura de sua casa presenciaram que suas mulheres, mães, irmãs praticam, cotidianamente, uma tripla jornada de trabalho e tiveram que dividir o trabalho em casa? Será que perceberam que esse trabalho doméstico nas mãos de uma só pessoa é injusto, ou vão fazer como o personagem do filme “Acorda Raimundo”, que ao acordar deu graças a Deus por ter sido apenas um sonho?

Será que as pessoas racistas e homofóbicas vão deixar de sê-lo no pós-pandemia? Será mesmo que os hábitos depredadores do meio ambiente, violadores de direitos, depreciadores do que é diferente nessa nossa sociedade heteronormativa irão mudar? Acho que não. A máquina que opera a manipulação das expressões de desobediência civil, que opera no campo das ideias para que as pessoas continuem sendo apenas expectadoras, não vai deixar.

O que me angustia é imaginar que no pós-pandemia, além das dores que acumulamos, essa clausura geral, como disse o personagem de Camus, que bem podia “fortalecer o caráter, começava no entanto, por torná-lo fútil”.

                                                                       Hace falta ideas nuevas

                                                                        Aporta lo que sientes”

                                                                        Pues los cambios estructurales

                                                                        Dependen de tus ideas

Nossa cidade, nosso país não podem se transformar em um lugar estranho a nós, não podemos aceitar sermos reféns de uma única lei.

Em um outro livro, “O Estrangeiro”, Camus faz menção ao estabelecimento de “uma verdade lastreada em conceitos e preconceitos para determinar padrões de comportamento sob a espada da lei, da ordem, da moral e da anti religiosidade. Discordando desse primado ele se vale da “revolta” como prova de uma existência pensante. Esse trecho de seu livro fez-me recordar a consigna “Brasil – Ame-o ou deixe-o” usada no período da ditadura, no governo Médici. A frase, que entrou pelos nossos ouvidos por meio da música de uns “inocentes inúteis”, retorna agora pelo convite à morte. Bolsonaro é o próprio vírus.

A determinação de governos ultraliberais, de evitar mudanças que poderiam resvalar nas estruturas de poder e, portanto, desequilibrar o sistema da dominação do capital, como por exemplo, uma auditoria das dívidas dos países devedores, a revogação do bloqueio à Cuba e uma taxação das grandes fortunas, resta claro quando se analisa alguns elementos desse cenário:

1- A recente indicação dada pelo presidente em entrevista de que “essa ajuda para a população carente só aguenta três meses, dada a crise financeira do Estado”. Mas a PEC do Orçamento de Guerra nos diz outra coisa quando autoriza o Banco Central a direcionar recurso público do povo para bancos e empresas privadas. Todavia, dentre o que se pode identificar de mais aviltante nessa PEC é um artigo que estabelece que durante a crise os dirigentes do Banco Central não podem ser acionados judicialmente por nenhuma decisão que tomarem. Ou seja, eles podem trazer um prejuízo enorme para o Brasil e fica por isso mesmo. Imagina se o BC já fosse independente, como querem o atual ministro da Economia e o atual presidente da Câmara, Rodrigo Maia?

2- As iniciativas da equipe econômica já vêm sinalizando que no pós-pandemia o governo federal terá como meta acelerar todas as reformas acertadas com as corporações e bancos internacionais até que o Estado seja destruído, tendo como elemento catalizador junto à população o discurso de que “agora sim, vai ser preciso o sacrifício de todos”, como se a crise econômica fosse uma consequência do corona vírus. Na verdade, é esse sacrifício da população que irá beneficiar as 0,01% das famílias milionárias desse país.

Mas como ainda temos lucidez, vamos ficar atentas porque, quando os primeiros sinais de volta à normalidade aparecerem (o vírus for embora por encanto ou todas as pessoas ficarem autoimunes), depois de terem morrido milhares, o governo deverá voltar com toda uma pressão midiática junto à população com o discurso da austeridade ou seja, “daqui por diante o governo terá mais rigor nos gastos públicos  e uma consolidação fiscal em várias dimensões, como por exemplo na sustentabilidade da dívida pública para a retomada do crescimento econômico”. Diante do que se anuncia, temo que muitas das medidas emergenciais que estão sendo tomadas se tornem permanentes, e aí não restará, do lado de cá, pedra sobre pedra.

3- O Tesouro Nacional tem no Banco Central para gastar 1,3 trilhões de Reais e mais 1 trilhão e meio de reservas internacionais, ou seja, mais de 4 trilhões em caixa. Então, que crise é essa? Quem ganha com ela?

4- A mudança do Ministro da Saúde, cujo substituto assumiu não para estar fazendo, como tem dito por mais de uma vez, uma avaliação técnica da situação da pandemia, mas para acelerar o fim do isolamento social. Nesse caso, só temos no momento uma alternativa, dada a inutilidade do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal como instâncias que resguardam um dos direitos inalienáveis amparados pela Constituição Federal – o direito à vida: clamarmos por uma declaração de independência política e de compromisso com o povo, por parte dos governos estaduais.

4- Na terceira semana de abril, durante entrevista coletiva, o general Braga Neto, ministro Chefe da Casa Civil, apresentou o Programa Pró-Brasil, um programa de Estado centrado no investimento público com a parceria do setor privado, previsto para durar 10 anos. Com a consigna da “Ordem e do Progresso”, o programa está todo voltado para dar sustentação ao crescimento econômico no pós-pandemia. Nele, deixamos de ter alma, somos agora considerados/as capital humano.

Mas em meio à pandemia, eis que surge uma luz no fim do túnel!

FMI e Banco Mundial, nossos velhos conhecidos, reuniram-se nesse mês para analisar a crise da economia mundial – supostamente como consequência do coronavírus – e para definir medidas para a reconstrução da economia. Estabeleceu-se três prioridades contra a pandemia: proteger vidas, proteger os meios de vida, construir um plano de retomada. Vinte pedidos de socorro de nações em dificuldades já haviam sido aprovados antes mesmo do início da reunião. Ao final, dentre outras medidas, o Banco Mundial ofereceu até U$ 160 bilhões em crédito, nos próximos 15 meses, para países pobres. Os “novos cristãos” pediram à comunidade internacional que perdoe a dívida dos países em desenvolvimento, como se essas dívidas tivessem sido viabilizadas sem as suas participações.

Estas duas instituições, velhas mantenedoras dos sicários econômicos, estão de volta oferecendo empréstimos em todas as frentes: investimentos, conhecimentos e poder de convocatória.  A quem acredita que, se não forem transformadas radicalmente as relações de poder desde uma perspectiva feminista, se estará apenas contribuindo para que se aprimorem ainda mais os mecanismos de exploração às populações vulnerabilizadas, a pergunta que vos faço é: socialismo ou barbárie?

                                                         Fortaleza, 27 de abril de 2020

Magnólia Azevedo Said       

                                                                                      Advogada, Educadora feminista

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