Por Letícia Sepúlveda, aluna de jornalismo da PUC-SP
Após 12 anos de intervenção militar no Haiti, o país ainda enfrenta instabilidade, miséria e sofre com as consequências de mais um desastre climático. Além das inúmeras denúncias de violações de direitos humanos e dos milhares de imigrantes espalhados pelo mundo. No ano de 2004, quando o então presidente, Jean-Bertand Aristide, foi deposto, as Nações Unidas implantaram uma missão de paz no país, que tinha como objetivo restabelecer a segurança, a estabilidade e a economia. O exército brasileiro foi escolhido para comandá-la. A Missão foi intitulada de Minustah (Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti).
A intervenção estava prevista para terminar este ano, entretanto com a chegada do furacão Matthew no dia 4 de outubro, deixando cerca de 1000 mortos e milhares de feridos e desabrigados, as perspectivas mudaram. Durante estes 12 anos, inúmeros casos de violação dos direitos humanos, tendo como culpados militares das tropas da Minustah foram relatados. O Brasil tem grande responsabilidade em relação a isto, uma vez que assumiu o comando da Missão. Episódios de abusos sexuais, introdução do cólera, repressão à liberdade de expressão e direitos negados em relação a greves trabalhistas foram denunciados. Existe também a relação entre as ações das Forças Armadas no Haiti e a atuação das UPPs (Unidade de Polícia Pacificadora) nas comunidades pobres do Rio de Janeiro.
Em meio a miséria e a falta de perspectivas, uma grande massa de haitianos imigraram para o Brasil. De acordo com a Polícia Federal, em 2015, foram 14.535. Em nível jurídico eles não são considerados como refugiados. Desastres climáticos e pobreza se enquadram na categoria de imigração.

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Miguel Borba de Sá

Por conta da crise econômica e da falta de empregos, além da dificuldade de se inserir socialmente, muitos estão trocando o Brasil pelo Chile. Segundo a Polícia Federal, de janeiro ao final de abril de 2016, 3.234 haitianos saíram do território nacional. Atualmente o governo chileno estima que há cerca de 9 mil no país. Atualmente a Missão enfrenta muitas incertezas e desafios. Sobre esta realidade, o especialista em Relações Internacionais, Miguel Borba de Sá, doutorando na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e membro da rede Jubileu Sul Brasil, explica suas opiniões sobre o assunto:
Letícia Sepúlveda: Qual a sua opinião sobre a Missão Minustah? Como avalia as ações do exército brasileiro?
Miguel Borba de Sá: Os dois objetivos principais da MINUSTAH eram (i) a “estabilização” política do Haiti e (ii) o fortalecimento da democracia no país caribenho para que a economia pudesse se desenvolver. Passados 12 anos de intervenção militar estrangeira, nenhum desses objetivos foi alcançado. Hoje o Haiti é um lugar mais instável, mais pobre e menos democrático do que era antes de fevereiro de 2004, quando um golpe de Estado foi perpetrado por setores da elite haitiana em colaboração com poderosos interesses econômicos e geopolíticos na França e nos Estados Unidos da América. A missão das Nações Unidas começa, portanto, a partir de uma quebra da legalidade constitucional, e busca sustentar até hoje um regime de participação restrito, no qual a população haitiana não tem o direito de escolher livremente seus representantes caso opte por candidatos e agendas políticas que desagradem à comunidade internacional.
As ações do Exército brasileiro possuem várias dimensões, mas, de modo geral, pode-se afirmar que as têm servido sobretudo para manter um status quo político artificial e que não se sustentaria caso as tropas deixassem que as haitianas e haitianos decidissem soberanamente os rumos de sua economia e sociedade. Assim como nas ocupações de favelas no Rio de Janeiro durante os megaeventos esportivos recentes, a atuação do Exército tem um caráter primordialmente repressivo sobre populações pobres e negras, então não é possível fazer um balanço positivo destes últimos 12 anos.
LS: O que tem a dizer sobre os casos de violação dos direitos humanos em missões de paz da ONU, os quais foram muito recorrentes nas missões do Haiti e da Libéria?
MBS: Infelizmente, os casos de violações de direitos humanos em operações de paz das Nações Unidas são uma regra, e não uma exceção. Não apenas no Haiti e na Libéria, mas também no Congo, Serra Leoa, enfim, em praticamente todos os locais em que intervenções militares estrangeiras de caráter multilateral foram realizadas existe um histórico de denúncia de abusos sexuais, exploração da vulnerabilidade dos habitantes locais, perseguição e repressão às manifestações políticas e organizações sindicais, dentre outros. É importante afirmar que as violações não são fruto de atitudes individuais e isoladas deste ou daquele soldado, mas que são uma prática sistemática das intervenções ditas “humanitárias” e fazem parte da essência deste tipo de concepção de “ajuda” calcada num aumento da militarização das sociedades.
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foto: Agência Brasil

Vale lembrar que no Haiti, o direito à saúde e à informação também foram sistematicamente violados pelas Nações Unidas (ONU), cujas tropas trouxeram o vírus do cólera e o disseminaram na população, contaminando mais de 600 mil pessoas e tirando a vida de cerca de 8 mil. Isto é lamentável, um verdadeiro absurdo. E pior: durante anos a ONU negou-se a assumir sua responsabilidade por estas vítimas. Então trata-se de uma política irresponsável e danosa, que termina aprofundando o quadro de negação de direitos a que estas sociedades já estavam submetidas.
LS: Analisando as normas do Direito Internacional Humanitário, em sua opinião, por que estes casos acontecem?
MBS: Estes casos acontecem por causa da lógica que está por trás das chamadas “intervenções humanitárias”. Elas não são destinadas a ajudar verdadeiramente os países e povos que ocupam militarmente. Seu objetivo, na maioria das vezes, é garantir que determinados arranjos econômicos e geopolíticos sejam mantidos ou criados, em especial a consolidação de regimes locais que garantam acesso a recursos naturais e mão-de-obra a preços baixos, que são exploradas por grandes corporações transnacionais. No caso do Haiti, os setores de turismo de luxo, mineração, agronegócio e maquiladoras da indústria têxtil são os que interessam ao grande capital internacional. Diversas empresas norte-americanas, francesas – e agora, também, brasileiras – se beneficiam dos baixos salários pagos à população haitiana, assim como de uma legislação trabalhista e ambiental frágil. Marcas famosas como Levis e Disney (e Coteminas) produzem suas malhas no Haiti e precisam de governos comprometidos com seus interesses de investidores. Não podem aceitar por muito tempo governantes que desagradem seus objetivos, que diminuam suas margens de lucro, como fez o ex-presidente, Jean-Bertrand Aristide, deposto duas vezes, em 1991 e 2004, justamente por tentar implementar políticas sociais mais amplas, que regulavam os mercados. Então, diante de objetivos assim, a violação de direitos humanos continuará sempre sendo a regra, jamais a exceção ou “casos isolados” como tenta-se retratar a cada vez que vaza uma denúncia.
LS: Após o furacão Matthew, o que você espera da Missão Minustah? Você é a favor que o Brasil continue mandando mais tropas? Justifique.
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Foto: Agência Brasil

MBS: Após o furacão Matthew o Brasil tem uma nova oportunidade de mudar sua política ingerencista no Haiti. É hora de substituir a invasão militar por um tipo de solidariedade verdadeira: com alimentos, mantimentos, professores, médicos, assistentes sociais e outros profissionais que realmente vão lá para ajudar a população civil, em vez de reprimi-la. A MINUSTAH é formada, na sua maioria, por contingentes militares oriundos de países latino-americanos. Mas é sempre bom lembrar que países como Venezuela e Cuba nunca mandaram um soldado sequer para o Haiti e sempre contribuíram bastante com recursos humanos e materiais durante e após as catástrofes naturais que a ilha sofreu. Essa ajuda não militarizada aconteceu após o terremoto de 2010 e, agora, com os danos causados pelo furacão também, chegando, inclusive, mais rápido que a de outros países mais ricos e com maior capacidade infraestrutural. Então o Brasil poderia adotar este outro modelo de ajuda, que é mais eficaz e sem chance de causar danos colaterais a um território já castigado.
LS: Como você avalia as semelhanças entre as ações das UPPs (Unidade de Polícia Pacificadora) nas comunidades do Rio de Janeiro e as ações das tropas do exército brasileiro na missão Minustah?
MBS: As semelhanças entre as UPPs e a MINUSTAH são enunciadas, antes de tudo, pelos próprios comandantes militares destas forças de ocupação. São eles que não perdem uma oportunidade para, orgulhosamente, traçar paralelos entre as “pacificações” de lá e daqui. E esta associação se dá para além do discurso, traduzindo-se em diversos intercâmbios de experiências entre as duas realidades, promovidos pelas forças ocupantes.
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Foto: Mídia Informal

No entanto, tanto no Haiti como no Rio de Janeiro, os resultados são decepcionantes. Em ambos os casos o que se vê é uma postura agressiva por parte das forças armadas para com a população civil, geralmente pobre e negra, tratada sempre como criminosos em potencial, que precisariam de forte repressão estatal para civilizar-se. É uma postura racista e elitista, que possui antecedentes muito antigos na História da sociedade e do Estado no Brasil, que foi o último país do continente a abolir oficialmente a escravidão em 1888 (enquanto o Haiti o fez pioneiramente durante sua revolução de independência entre 1791 e 1804). Vale lembrar que desde o século XIX a elite brasileira já apresentava uma tendência a tratar as populações pobres e negras como “classes perigosas” e naquele século cunhou-se a expressão “Haitianismo” para designar o medo e justificar as políticas violentas que as classes proprietárias empregavam para evitar que uma repetição da revolução haitiana acontecesse no Brasil. Então é essa lógica herdeira do escravismo que ainda persiste hoje em dia na forma de UPPs, BOPE, Caveirão, MINUSTAH…
É uma lástima, uma vergonha para nós brasileiros e brasileiras. Mas é a realidade e não pode ser escamoteada: o racismo da elite e a truculência seletiva do Estado são as principais características que unem as estratégias de controle social chamadas eufemisticamente de “pacificação” no Rio de Janeiro e no Haiti.
E quem muitas vezes lucra com essas operações são as organizações não-governamentais (ONGs) que canalizam, sem transparência alguma, os recursos que supostamente seriam destinados a fazer avançar a parte “social” de tais processos. O caso do Viva Rio é emblemático desta indústria humanitária: é uma ONG que trabalha para legitimar intervenções militares, lucrando com a retenção dos recursos recebidos de governos e pessoas bem-intencionadas. Além de sua sede no Rio de Janeiro, eles também possuem uma em Porto-Príncipe (capital do Haiti), com mais de 110 funcionários. Sua receita anual atinge R$ 16,5 milhões e contam com 6 mil funcionários atuando em 50 municípios do Rio de Janeiro, em outros estados brasileiros e em países como Colômbia, Panamá e Congo. Além de recursos públicos eles estabelecem parcerias com grandes corporações como a Coca-Cola e também no mercado financeiro, como no fundo que é gerido pela Oceania Investimentos. Trata-se de um serviço desumano e cruel, que lucra com a desgraça alheia, doméstica e internacionalmente – mas que vende-se como benfeitor e altruísta.
LS: Segundo o Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal (Siafi) os gastos brasileiros com a missão de paz no Haiti chegaram a cerca de 2,12 bilhoes de reais até 2014. Qual a sua opinião em relação a estes gastos? Acha que eles deveriam continuar?
MBS: Assim como os gastos com a rolagem e financiamento da dívida pública, os gastos militares geralmente não recebem a atenção que mereceriam pela imprensa na hora de anunciar as políticas orçamentárias e fiscal no Brasil. No entanto, ambos são gastos que oneram muito os cofres públicos e que poderiam ser melhor empregados em outras iniciativas, pacíficas, de verdadeira solidariedade entre os povos. Em tempos de crise econômica e ajuste fiscal, deveriam ser os primeiros gastos a ser cortados, mas o que se vê é uma política oposta: mais militarização e mais endividamento. O governo não eleito de Michel Temer aprofunda esta tendência, que já existia na gestão anterior. Então, tais gastos deveriam passar por auditorias integrais, com participação da sociedade civil, para que se soubesse exatamente o quanto é gasto e, assim, tornar possível uma inversão de prioridades.
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Foto: Haiti No Minustah

Agora, uma coisa é fundamental: após mais de uma década investindo na militarização e repressão dos anseios de participação política democrática da população haitiana, o Brasil não pode simplesmente lavar as mãos e sair do Haiti como se não tivesse responsabilidade pela dramática situação social que ajudou a produzir e sustentar no país caribenho com intervenção militar que comandou desde 2004 até 2016. Se gastamos tanto dinheiro levando armas e soldados para lá durante tanto tempo, seria no mínimo razoável que gastássemos o mesmo montante com iniciativas realmente solidárias, pacíficas e civis, destinadas ao povo que tanta inspiração proporciona aos amantes da liberdade e da igualdade na América Latina e Caribe e em todo o mundo.

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