Brasileiros agrediram Miguel com paus e pedras na rua no dia 20 de agosto, em Boa Vista, três dias após um comerciante de Pacaraima ser assaltado e agredido por supostos venezuelanos (Foto: Yolanda Mêne/Amazônia Real)
Boa Vista (RR) – Miguel, um venezuelano de 30 anos, pede para não ser identificado pelo sobrenome, e não autoriza que sejam feitas gravações. Está assustado. Na madrugada de segunda-feira (20) foi atacado com paus e pedras por brasileiros a caminho da casa onde mora seus irmãos na capital roraimense. Pedreiro, ele disse que levou golpes na cabeça e nas costas. Desmaiou na rua e acordou em um hospital. “Eu vou embora! Prefiro morrer de fome na Venezuela a me matarem aqui”, afirma ele, que imigrou para o Brasil há sete meses onde procurou trabalho para sustentar a família em seu país.
O pedreiro é da região de El Tigre, no estado de Anzoátegui, capital do município de Simón Rodríguez, distante há 3 mil quilômetro da fronteira brasileira. Lá deixou a mulher e dois filhos, sua mãe e pai. O ataque contra ele aconteceu três dias após o comerciante brasileiro Raimundo Nonato de Oliveira acusar venezuelanos de roubo e agressão, em Pacaraima, na fronteira com Santa Elena do Uairén, na Venezuela. Como represália ao assalto, ao menos 1.200 imigrantes foram expulsos aos gritos por brasileiros da fronteira do Brasil, em 18 de agosto. Os brasileiros também queimaram roupas e alimentos dos venezuelanos. O comerciante, que foi ferido com uma chave de fenda na cabeça, já recebeu alta do hospital.

Segundo a Polícia Civil, em depoimento Raimundo contou que ele e a esposa foram amarrados e agredidos, durante o assalto, na noite do dia 17. “A ação durou cerca de meia hora. Os assaltantes roubaram R$23 mil, um computador e três aparelhos celulares. Ainda segundo a esposa, um dos venezuelanos, antes de sair da casa, jogou uma toalha em seu rosto e a agrediu com um murro”, diz a nota oficial.

A fronteira de Pacaraima, que tem 12 mil habitantes, foi fechada, sendo interrompido o abastecimento do combustível da Venezuela, que fornece gasolina mais barata aos brasileiros. Na segunda-feira, a fronteira foi reaberta. Os imigrantes começaram a retornar ao Brasil. O governo federal divulgou que 120 homens da Força Nacional seriam enviados até a cidade. Sessenta já haviam chegado até esta terça-feira (21).

Brasileiros atacam imigrantes venezuelanos em Pacaraima (Foto: Isaac Dantas/Divulgação)

 
Organizações de direitos humanos classificaram os ataques de brasileiros aos venezuelanos como atos de xenofobia (ódio ao estrangeiro), em Roraima. O procurador da República Fabiano de Moraes, coordenador do Grupo de Trabalho sobre Migração e Refúgio da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) disse àAmazônia Real que houve atos de racismo que precisam ser investigados criminalmente. Ao mesmo tempo, ele disse que é preciso investigar a acusação de assalto e agressão contra o comerciante.
“Qualquer ato da população que impeça um imigrante de ficar no Brasil é um ato violento. Embora haja o sentimento de contrariedade da população local, nada justifica uma violência. Quanto à violência contra a população local [como no caso do comerciante] cabe aos órgãos públicos de segurança, independente de que seja brasileiro ou venezuelano, tomar medidas para evitar”, disse.
Fabiano de Moraes disse que esteve no último dia 17 em Pacaraima e identificou uma série de deficiências na assistência aos imigrantes. A principal delas, segundo o procurador, foi a ausência de um abrigo temporário para os venezuelanos ficarem enquanto eles aguardam a expedição da documentação no centro de triagem.
O “sentimento de contrariedade” exposto pela população é o fato de que, com a entrada de cerca de 60 mil venezuelanos em Roraima de 2017 a este ano, os serviços de saúde e educação estão sobrecarregados. A população reclama ainda da insegurança nas ruas.

Solidariedade existe  

Refugiado, Miguel procurou o Brasil para ajudar a família (Foto: Yolanda Mêne/Amazônia Real)

O pedreiro Miguel é um dos 2 mil venezuelanos que dormem em praças e ruas de Boa Vista. Os abrigos estão lotados. Ele disse que todos os dias ao amanhecer percorre de bicicleta um trajeto de três quilômetros até a casa dos irmãos para tomar o café da manhã. Na segunda, conta ele à reportagem da Amazônia Real, ouviu um grupo de brasileiros gritar “Venezuelano!”, antes de sentir a pancada na cabeça e desmaiar. Foi ferido na cabeça e no corpo, provavelmente por pedras e paus. Ele diz que não foi furto, pois não levaram sua carteira. Mas não sabe onde está sua bicicleta. Não foi à delegacia prestar queixa pois tem medo de mais violência.
Como não apareceu para trabalhar, os brasileiros que o contratam para realizar serviços de pedreiro, foram até a casa de sua família e descobriram a agressão. A jornalista Janaína Souza, que conhece o pedreiro, escreveu em sua página no Facebook um protesto contra o que chamou de “ódio e violência” dos brasileiros de Roraima. “Seu Miguel virou vítima do ódio que impera no momento em nosso Estado, seja por meio de postagens, nos papos de esquina, nas mesas de bar, nas boates, no mercadinho da esquina etc. Ele só iria trabalhar, nessa segunda-feira (20), na construção da obra do meu irmão. É pedreiro e dos bons”, disse ela, que ainda alertou para o clima de xenofobia em Boa Vista:
“Muita gente não se contagia pelo ódio plantando, mas infelizmente muita gente pega isso como uma doença contagiosa. Pense bem antes de propagar o ódio, pois muitos inocentes vão continuar pagando. Hoje foi seu Miguel, amanhã pode ser alguém da sua família, um amigo ou você”, disse Janaína.
Miguel contou que na Venezuela trabalhava um mês “para comer dois dias”, diante da crise econômica e do desabastecimentos de alimentos no país. “Aqui (no Brasil) com uma diária a família se alimenta por uma semana”, compara ele. Mesmo assim, após sofrer com a xenofobia dos brasileiros, Miguel diz que sua decisão de partir é definitiva. “Não vou nem pegar o ônibus, porque na fronteira a situação está tensa. Quero ir direto para a Venezuela”, disse o pedreiro.

Xenofobia institucional

FOTO DESTAQUE PARA SLIDER

Policiais observam abrigo de venezuelanos que foi incendiado em Pacaraima (Foto: Geraldo Maia)

Em entrevista em junho à Amazônia Real, o cientista político Eloi Senhoras, disse que esse crescente ódio e intolerância à presença dos imigrantes em Roraima tem se manifestado devido à falta da presença do estado brasileiro. Senhoras é professor dos cursos de graduação e pós-graduação da Universidade Federal de Roraima (UFRR). “Em parte, começa a inflar um discurso xenofobista em função da própria ausência do estado. Existe uma violência institucional por parte do estado – ou um silêncio administrativo. Existe um grande vácuo por parte das políticas públicas para tratar o assunto”, observa Senhoras.
Segundo ele, com a ausência do poder público começaram a surgir as manifestações contra e a favor dos venezuelanos. “Alguns de solidariedade por parte da sociedade civil, mas também, crescentemente, de xenofobia. É importante entendermos que começa a surgir uma polarização de discurso a favor e contra”, explica o cientista político.
Na terça-feira, em Pacaraima, onde vivem cerca de 3 mil imigrantes, populares fizeram uma carreata pelas ruas pedido paz na fronteira entre brasileiros e venezuelanos.

Atos são sempre com fogo

Interior da casa dos venezuelanos que foi incendiada em Boa Vista, em fevereiro (Foto: Yolanda Mêne/Amazônia Real)

Os casos de xenofobia em Roraima aumentaram no início deste ato. Em março, moradores da cidade de Mucajaí expulsaram venezuelanos, que estavam em um abrigo improvisado, jogaram pertences deles nas ruas e atearam fogo. O caso aconteceu após um crime em represália à morte de um brasileiro em uma briga com venezuelano. O Ministério Público do Estado denunciou cinco brasileiros por xenofobia e incitação ao crime, em 23 de julho. Conforme a investigação, dois acusados incitaram a ação em um carro de som.
Segundo informações do MPE, o brasileiro Eulis Marinho de Souza foi assassinado após uma briga generalizada entre brasileiros e venezuelanos, no dia 18 de março. O venezuelano Argenis Rafael Barrios Lopes foi denunciado pelo MP por homicídio qualificado, por ter participado do assassinato.
A morte do outro venezuelano que também teria participado do crime, Luís José Figueira Guilen, ainda está sob investigação.
Antes disso, em fevereiro, a Polícia Civil de Roraima havia prendido o guianense Gordon Fowler, morador de rua de 42 anos. Ele foi acusado de tentativa de homicídio, por motivo torpe e uso de fogo, após incendiar duas casas onde moravam venezuelanos, no bairro Mecejana, em Boa Vista.

Cônsul pede punição

Entrevistado em Manaus, o cônsul-geral da República Bolivariana da Venezuela no Amazonas, Faustino Torella Ambrosini disse à reportagem que os venezuelanos confiam nos órgãos de segurança do Brasil para investigar os responsáveis e puni-los pela agressão e assalto ao comerciante brasileiro Raimundo Nonato de Oliveira na sexta-feira (17). “Aqueles que foram produtos de delito têm que ser presos, e também pedimos a colaboração para que os venezuelanos não sejam agredidos, que suas propriedades não sejam queimadas, porque certamente nem todos os venezuelanos são culpados pelo que esses delinquentes fizeram”, disse o cônsul. Veja o vídeo abaixo.
 

Em junho passado, a Amazônia Real publicou uma matéria sobre agravamento das hostilidades e xenofobia contra venezuelanos em Roraima. Em resposta enviada à reportagem, o governo de Suely Campos (PP) informou que “medidas que estão sendo tomadas para impedir a xenofobia em Roraima e que a Delegacia Geral da Polícia Civil do estado instaurou inquérito Policial de número 006/2018, com a finalidade de apurar os crimes de discurso de ódio, xenofobia e incitação à discriminação e violência contra pessoas de nacionalidade venezuelana”.
Na mesma nota, o governo de Suely Campos diz que “as pessoas que estão promovendo e incitando a violência estão sendo identificados através de trabalho de inteligência policial e investigações, e serão devidamente indiciadas pela prática dos crimes já mencionados”.

Investigação inepta

Comerciante Raimundo Nonato de Oliveira, de 55 anos, foi ferido na cabeça, mas já recebeu alta. (Foto: Nilton Fukuda/Estadão Conteúdo)

Amazônia Real perguntou nesta terça-feira (21) da Secretaria de Comunicação do governo de Roraima quantos registros foram feitos pelo número 190 de denúncias de xenofobia, quantos foram investigados e se houve indiciamento. A assessoria de imprensa do governo informou que nenhum caso desses foi denunciado pelo serviço até agora.
Procurada também, a Polícia Civil de Roraima anunciou que instaurou inquérito para apurar crimes de discurso de ódio, xenofobia e incitação à discriminação e violência contra pessoas de nacionalidade venezuelana, tipificados no Art. 20 da Lei n. 7.716/89, artigos 286 e 288 do Código Penal (incitação ao crime e associação criminosa). Há suspeitas de envolvimentos de políticos e policiais nos protestos.
Segundo nota da Secretaria de Comunicação do Estado de Roraima, a delegada geral de polícia de Roraima, Rozane Wildmar, disse que o inquérito policial vai apurar as condutas que desencadearam a manifestação e todas as consequências. “No decorrer das investigações, outros crimes podem ser vislumbrados”, disse ela.
Conforme a delegada, cinco pessoas foram ouvidas na manhã desta terça-feira na Delegacia de Pacaraima. Ela disse que são suspeitos de serem os organizadores da manifestação e testemunhas. Os nomes dos ouvidos, contudo, não foram divulgados pelo governo.
“Estamos com uma demanda muito grande de pessoas a serem ouvidas. Todo o trabalho conta com o apoio do Ministério Público Estadual. Será uma investigação detalhada e demorada, vez que são muitas pessoas a serem ouvidas”, disse Rozane Wildmar.
Rosane disse ainda que a Delegacia Geral de Polícia encaminhou reforço de efetivo para o município de Pacaraima e os policiais lotados na cidade que estavam de folga, foram convocados para retornar aos serviços.
Segundo a Secretaria de Comunicação do governo de Roraima, também foi instaurado um inquérito para apurar o crime e roubo praticado por quatro homens de origem venezuelana contra o comerciante Raimundo Nonato de Oliveira e sua família.
O casal foi socorrido por vizinhos e levados ao Hospital do Município. Por se encontrar em situação clínica mais grave, Raimundo Nonato foi removido para Boa Vista e após atendimento médico recebeu alta.
Nesta segunda-feira (20), Raimundo prestou declarações à delegada Rozane Wildmar. Ela ouviu ainda outras três pessoas sobre esse crime.
De acordo com a delegada, a Polícia já tem indícios da autoria do crime, mas por se tratar de estrangeiros eles ainda não foram detidos.
“Estamos com trabalhos de investigações bem adiantados e contamos inclusive com o apoio do Ministério Público. As investigações demandam tempo e estamos seguindo algumas linhas de trabalho para identificarmos os autores do crime”, esclareceu.

Temer envia comissão

Ataque de brasileiros em Pacaraima (Foto: Isaac Dantas/Divulgação)

Após o atos de xenofobia em Roraima, uma comitiva interministerial do governo do presidente Michel Temer visitou Pacaraima entre segunda e esta terça-feira. Durante a entrevista coletiva concedida na Base Aérea de Boa Vista, a representante do governo federal, Viviane Esse, anunciou que aumentará o número de imigrantes que serão transferidos para outros estados no final de agosto e início de setembro, no chamado programa de interiorização. “A gente vai fazer isso em todo o Brasil, nós já temos várias vagas nos estados da Região Sul. Levaremos essas pessoas, o Exército fornecerá alimentos, a gestão será da ONU, que também pagará aluguel e também vamos inseri-los no mercado de trabalho”, completou.
Viviane Esse afirma que 4.700 pessoas já estão em abrigos em Roraima mantidos pelo governo federal. Novos abrigos serão construídos, segundo a representante do governo federal, e os imigrante serão incentivados a buscá-los. De acordo com ela, esses novos abrigos serão construídos em áreas mais afastadas das cidades. “Agora a gente vai levar para abrigos privados, que estão alugados nos estados”, declarou Viviane Esse.
Segundo a prefeitura de Boa Vista, um levantamento feito em junho deste ano identificou 25.068 venezuelanos residindo na capital de Roraima, o que representa 7,5% da população (de 320 mil habitantes). Conforme a prefeitura, o número de entradas de venezuelanos de janeiro a maio de 2018 foi 55% maior do que todo o ano de 2017. “Se a curva de tendência continuar, até dezembro de 2018, Boa Vista poderá receber mais 10 mil venezuelanos”, diz o município.

Acnur condena violência

Abrigo Rondon 1, em Boa Vista, que recebeu cerca de 100 venezuelanos vindos da cidade de Pacaraima nos últimos dois dias (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Indagado sobre os atos de xenofobia ocorridos no sábado em Pacaraima, o porta-voz do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur) no Brasil, Luiz Fernando Godinho disse que “os fatos falam por si”, mas que precisaria esperar a investigação concluir para saber quem praticou os ataques e quem mobilizou o protesto.
“A Acnur condena qualquer tipo de violência, seja contra os venezuelanos, seja contra o próprio cidadão lá [comerciante] que foi atacado. Queremos que as coisas sejam esclarecidas e que as pessoas sejam apontadas. Quer dizer, foram duas ações que carecem de investigação, um assalto e um ataque às pessoas”, afirmou
Segundo Godinho, as autoridades deram uma resposta, as medidas foram anunciadas pela Presidência da República [no domingo, dia 19] e o movimento na fronteira está normalizado.
“O centro de recepção de documentação que opera em Pacaraima está funcionando, registrando e documentando as pessoas, a situação está se normalizando, ou já estaria normalizada, pelas informações que a gente tem. A gente continua trabalhando com o governo e trabalhando com as autoridades”, disse. (Colaboraram Alberto César Araújo, Elaíze Farias, Maria Cecília Costa, Yolanda Mêne e César Nogueira)

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